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O INIMIGO INVISÍVEL

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      Estar em quarentena é tomar um porre de si mesma. E como qualquer porre, o que mata é o excesso. Todo dia ter que lidar, dezenas de vezes, com o próprio reflexo no espelho - da cara maltratada, do corpo maltrapilho e do peito em frangalhos. E ter que lidar com a dor de descobrir que isso que nos afunda não se deve apenas ao isolamento. O que nos faz peso também são as pedras que carregamos voluntariamente em nossos bolsos há muito tempo e ouso dizer que, algumas delas, fomos nós mesmos que colocamos lá. Estar isolada é ser, ao mesmo tempo, aquela que se atira da ponte com os bolsos cheios de pedras e aquela que impede a suicida da morte certeira. Vez ou outra é também ser o rio faminto que aguarda, de boca aberta, a moça desesperançada, pronto para tragar mais uma alma.

      Nunca estive trancada em mim por tanto tempo e são notáveis os efeitos colaterais. São tantos os demônios que tem dias que vivo no inferno e minha vida tem se resumido a álcool, ora em gel, ora etílico. Dou o devido valor às máscaras que, além de me proteger do vírus, tampam mais da metade do meu rosto nos dias em que estou derrotada. E não há vergonha na falha, na fraquejada. Também não há vergonha na queda. Chega um dado momento da vida em que mostrar os joelhos ralados é motivo de orgulho por ter conseguido, mais uma vez, se levantar. Hoje, penso que não podemos ser fortes todos os dias e não podemos nos cobrar isso. Olhar o poço de outra perspectiva nos faz ter uma noção mais precisa do quão fundo chegamos. E, apesar de uma saída parecer absolutamente impossível, ter noção real da profundidade que atingimos nos dá a possibilidade de traçar uma estratégia de fuga. O importante é não deixar de buscar caminhos.

      Apesar de trancafiada dentro das quatro paredes anguladas de casa – e das paredes curvilíneas do meu peito - compreendo e assumo o tamanho do meu privilégio em poder me isolar e, ainda assim, ter teto, comida e água quente. E isso é o que me traz para a razão em muitos momentos. “Apesar de tudo, há teto, comida e água quente”, tenho repetido isso tanto que já tenho essa frase como um dos mantras da quarentena. “Um dia de cada vez” pelo jeito se tornará um mantra para a vida.

     O presente assusta – e muito, mas a incerteza do amanhã deixou de ser uma abstração e parece ter se materializado. Apesar de não fazer sentido, de soar absurdo, a sensação é de que o amanhã nunca foi tão concretamente incerto. E para suportar o porvir, tive que acolchoar meu cérebro para garantir que eu não me machuque dentro de mim mesma. Tão poderoso quanto o imperceptível vírus que nos assombra mundo afora, mora na gente um inimigo invisível que também nos devora por dentro.

Trilha Sonora: Johann Sebastian Bach – Toccata and Fugue em D menor

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